A IMPRENSA DE CUYABÁ

Sábado, 05 de Março de 2022, 14h:33

A guerra e as mulheres

Foto: Divulgação

Neila colorida sorrindo

Neila Barreto

O Brasil sofreu com a Guerra do Paraguai (1864 – 1868) iniciada pela ambição do ditador Francisco Solano Lopes, que teve como objetivo aumentar o território paraguaio e, ao mesmo tempo, a obtenção de uma saída para o Oceano Atlântico, por meio dos rios da Bacia do Prata, atingindo às embarcações brasileiras que se dirigiam a Mato Grosso por meio da capital paraguaia. Hoje assistimos esses momentos estarrecidos pelos sofrimentos proporcionados pela Rússia contra a Ucrânia.

Durante o período da guerra do Paraguai homens, mulheres e crianças sofreram inúmeras perseguições. As que não foram fuziladas depois de terem passado por todo o tipo de vexames e torturas transformaram-se em errantes, fugidias. Por outro lado, as residentes, parentes de soldados ou simplesmente moradoras das localidades por onde passavam as forças de López, foram condenadas pelas circunstâncias a seguir as tropas paraguaias em sua desesperada fuga. Estamos presenciando esses momentos onde mulheres, velhos e crianças sofrem pelo mundo afora. Errantes procuram abrigos e solidariedade de outros países. Pelas notícias observamos não ser fácil esses caminhos.

Para Maria Adenir Peraro, no caso da Guerra do Paraguai coube a essas mulheres “...partir e retomar a vida em outro país/e ou região, como no Brasil e em Mato Grosso”. Também caberá a essas mulheres ucranianas retomarem as suas vidas em outros lugares, desde que consigam alcançar esses espaços.

O documento inédito abaixo transcrito é um belo convite para o conhecimento da situação da mulher paraguaia fora do seu espaço urbano, suas angústias e os seus sofrimentos, após a Guerra do Paraguai.
No ano de 1876 Cuiabá recebeu Joanna Saila Cannet, uma paraguaia. Chegou a Cuiabá em busca de trabalho e paz. Na cidade foi contratada como criada de serviço da residência do Alferes Manoel José Brandão, residente no sobrado da praça central de Cuiabá, de propriedade do Capitão Antonio Rodrigues de Araújo, próximo ao ribeirão Prainha, hoje centro da cidade da capital.

Nesse mesmo ano a cidade ainda não contava com o serviço regular de abastecimento de água, feito este só conseguido em 30 de novembro de 1882. Em função disso, a população se valia para abastecer de água, das bicas, fontes, chafarizes, poços, rios e riachos. Era natural uma criada como Joana ir em busca de água para os seus afazeres domésticos, neste caso pela proximidade, rumo ao ribeirão prainha carregando uma pequena jarra de louça na mão.

Um dia, Joanna caminhava lentamente pela Rua 1º de Março, atual Galdino Pimentel, nas proximidades do ribeirão Prainha, quando no meio do caminho um soldado que aparentemente não lhe preocupou. No entanto, sem que Joanna percebesse, fora atacada por ele, às seis horas da tarde do dia 25 de novembro de 1876, à rua 1º de março, em Cuiabá. Esse homem, mais tarde foi identificado por testemunhas, como João Evílio Furtado, soldado do 8º Batalhão de Infantaria, que a feriu profundamente. José da Cunha Maciel, caixeiro viajante também confirmou o caso. De igual, assim procedeu Prudêncio de Mesquita Muniz, entre outras.

Ouvidas as testemunhas, concluiu-se que o soldado, João Emilio Furtado feriu gravemente Joanna Saila Canetti: com sete facadas, tendo como origem deste crime “o querer por força” uma vez que Joanna havia deixado a sua companhia donde se havia retirado desde o dia 25 de outubro findo, para trabalhar como criada de serviço de Alferes Manoel Jose Brandão.

No processo podiam ainda serem inqueridas as seguintes testemunhas. Coronel Jose Leite Galvão, Alferes Maritano de Souza Guimarães, Zeferino Victoriano da Costa, Carlos Vandoni, Antonio Vieira Nery, cadete do 21 Batalhão de Infantaria e Benedito escravo do Barão de Aguapehi. Delegacia de Policia em Cuiabá, 29 de novembro de 1876. O Delegado de Policia. Joaquim José R. Calháo. Ao Sr. Promotor publico para dar a denuncia no prazo da lei. Cuiabá, 29 de novembro de 1876.

Como afirma Maria Helena Capelato, “os documentos são, ao mesmo tempo, falsos e verdadeiros. A tarefa do historiador consiste em desmistificar o seu significado aparente, explicitando que sua roupagem resulta de uma construção. Demoli-la implica analisar as condições em que o documento foi produzido”. É necessário antes de tudo saber: “quem produziu o jornal? Para quê? Como e quando? ”.

Desse modo, ao observar a Guerra e o Pós-guerra do Paraguai a partir da perspectiva de gênero, significa pensar as relações e articulações entre o espaço público e o espaço privado de uma sociedade em guerra. Para Joshua Goldstein: “não há nenhum lugar onde os papéis de gênero são tão proeminentes como nas guerras”. Ele afirma que a mulher tem um complexo papel nas guerras e que sua presença regula o comportamento sexual e social dos homens. Assim presenciamos no momento.

O estupro como arma de guerra e outras formas de violência contra as mulheres consolidam-se como um padrão sistemático e que se repete em muitos conflitos e na Guerra do Paraguai não foi diferente. Humilhar uma mulher sexualmente e destruir sua integridade física e moral torna-se, também, um meio de aterrorizar, rebaixar e derrotar o país inimigo. Os costumes, a cultura e a religião constroem a imagem das mulheres como a de quem carrega a honra de sua Nação, por isso, busca-se punir, intimidar e humilhar as mulheres.

O ferimento provocado contra Joanna por João Evílio teve objetivamente a intenção de tê-la em seus braços pela força brutal. A violência contra a mulher provocada desde que mundo é mundo, sempre teve como um dos seus maiores agressores homens ligados às milícias policiais, entre outros Neste caso específico um integrante do 8° Batalhão do acampamento de Cuiabá.

Pelo que se observa as mulheres menos protegidas sempre se tornaram presas fáceis para esse bando de homens embrutecidos pelos horrores das guerras, pela distância de suas famílias e de sua terra natal, cujos apetites sexuais deveriam ser saciados, mesmo que fossem a força bruta.

Para Jérri Roberto Marim, O maior querer de um homem era encontrar uma mulher que todos cobiçassem. (...) Entre as mulheres, as mais desejadas, eram as mulheres paraguaias, representadas como belas, sensuais e femininas. Eram invariavelmente, morenas, de cabelos longos, negros e brilhantes, vaidosas e de formas generosas. Quem sabe estava aí a justificativa encontrada pelo soldado Furtado para agredir Joana. Será?

Como comportará as ucranianas? Como o mundo poderá ajudar? E as crianças e os velhos? Como ajudar! Como amenizar! Queremos um mundo de paz, de harmonia onde diferenças sejam resolvidas com os diálogos e não com a guerra.

(*) NEILA BARRETO é Jornalista. Mestre em História. Membro da AML e atual presidente do IHGMT e escreve as sextas feiras para o site A imprensa de Cuiaba.

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