Filipe Maia Broeto
Não é incomum ver-se, no Direito, certa dose de incerteza ou imprecisão. Por se tratar de ciência deontológica, busca disciplinar as coisas a partir de uma projeção de como elas deveriam ser, e não efetivamente de como elas realmente são. Ao contrário das leis da física, que fornecem resultados certos para casos determinados, no Direito tal pretensão não resulta possível, razão por que as leis, por mais objetivas que sejam, tendem a ser relativizadas quando trazidas do plano abstrato para o concreto.
Reconhece-se que a aplicação inflexível da lei, sem o necessário juízo valorativo por parte do julgador, pode redundar em injustiças, a ponto tal de se fazer injustiças ao aplicar o Direito. Do mesmo modo, pode-se dizer que haverá casos em que a decisão, para ser justa, deverá contrariar ou negar vigência ao direito positivo. ¹É justamente esse terreno arenoso o local para um embate de ideias e correntes jusfilosóficas que buscam calibrar se é possível e/ou aceitável, e até a que ponto, haver discricionariedade do julgador ao aplicar a lei.
Sem aprofundar nas densas discussões travadas sobretudo na “transição” do positivismo ao pós-positivismo – das quais participaram grandes nomes como Herbert Hart, Ronald Dworkin e Robert Alexy, dentre outros –, fato é que não se pode pretender do Direito a previsibilidade das ciências exatas. Não obstante a isso, de modo algum é válido admitir que essa ferramenta de orientação e gestão da vida humana em sociedade seja tão imprecisa quanto a vontade pessoal/individual de cada um que a aplica, sob pena de instauração de verdadeira insegurança jurídica e, consequentemente, caos social.
Para evitar que a comportamentos idênticos fossem atribuídas consequências distintas, surge a lei, como norma de conduta, abstrata e geral, exigível de todos. Num mundo cada vez mais complexo e veloz, no entanto, é mais do que provável que esta mesma lei – a qual quase sempre chega atrasada – não consiga abarcar no seu universo de hipóteses os casos concretos nascidos dia após dia na sociedade contemporânea.
A realidade que dá causa à criação de uma lei, a propósito, não sói ser a mesma de quando a lei, após o devido processo legislativo, entra em vigor, tempos depois, numa sociedade que já não se apresenta igual à de antes. Este é um outro problema que acaba por dar mais espaço à chamada subjetividade ou discricionaridade do aplicador do Direito.
Como não se quer discutir, nesta oportunidade, a possibilidade ou aceitabilidade de discricionariedade no Direito, estabelece-se como premissa o fato de que ela existe, notadamente nos chamados hard-cases, mas deve ser minimizada pela aplicação racional da lei.
Esses poucos parágrafos servem de preparo para uma afirmação que se pretende justificar na continuação: se há hipóteses nas quais o juízo valorativo mais complexo é necessário, existem também preceitos objetivos, evidentes, que não necessitam – ou não deveriam suscitar – maiores discussões, é dizer, nos quais não deve(ria) haver aceitação de discricionaridade.
A seguir, dois exemplos de casos complexos que requerem certa dose de subjetividade do julgador ao apreciar o caso concreto.
Exemplo 1: Se uma pessoa mata em legítima defesa, não comete crime (art. 23, II, CP). Trata-se de norma jurídica complexa, que necessariamente exige uma valoração acurada acerca dos elementos necessários à incidência da causa justificante: saber se o sujeito empregou moderadamente os meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” (art. 25, CP). A toda evidência, o juízo valorativo deve ser empregado, por exemplo, para aquilatar a questão de fato (quaestio facti), ou seja, i. o que é um meio necessário; ii. em que grau foi utilizado; iii. se a agressão foi injusta; iv. atual ou iminente etc.
Exemplo 2: O mesmo ocorre em relação à regra de julgamento do art. 386, VII, do Código de Processo Penal, segundo o qual “o juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça, não existir prova suficiente para a condenação”. Nota-se, neste caso, que, para incidir a norma, é necessário um juízo de valoração acerca da suficiência probatória, matéria, aliás, que apenas recentemente passou a receber mais atenção da doutrina e jurisprudência brasileiras.
Esses dois exemplos servem para evidenciar, por um lado, a complexidade do Direito e demonstrar, por outro, a importância da correta análise dos fatos (quaestio facti), que figura, em última análise, como pressuposto para a adequada aplicação do Direito.
Sem embargo, existem casos – que geram espanto, frisa-se – em que não há nenhuma necessidade de exame complexo da situação de fato para a incidência da norma, mas cujo consequente normativo, imperativo por excelência, não é aplicado pelo Poder Judiciário. Exemplo claro disso são as muitas decisões, do primeiro ao último grau de jurisdição, teratológicas, as quais causam a impressão de que não há mais Direito, nem expectativa de previsibilidade decisória por parte do Poder Judiciário.
Em terrae brasilis, há “leis que não pegam” ou que “não caem no gosto do povo”.
A Lei Federal n. 12.850/2013, por exemplo, de forma expressa e objetiva, dispõe, no parágrafo único do art. 22, que “a instrução criminal deverá ser encerrada em prazo razoável, o qual não poderá exceder a 120 (cento e vinte) dias quando o réu estiver preso, prorrogáveis em até igual período, por decisão fundamentada, devidamente motivada pela complexidade da causa ou por fato procrastinatório atribuível ao réu”. Ora, se há um prazo estipulado em lei, com verbos imperativos a determinar que a instrução criminal deverá ser encerrada em x dias, uma vez superado o termo legal (hipótese de incidência ou suporte fático concreto), o consequente normativo há de ser reconhecido: a coação considerar-se-á ilegal quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei (art. 648, II, CPP).
Observa-se que o art. 22, parágrafo único, da Lei Federal n. 12.850/2013 explica, ainda, que este prazo poderá ser prorrogado, por decisão fundamentada, devidamente motivada pela complexidade da causa ou por fato procrastinatório atribuível ao réu. Nesse sentido, caso o juízo anteveja que não conseguirá encerrar a instrução de réu preso em 120 (cento e vinte) dias, deverá, antes do termo final, por decisão, fundamentar a dilação de prazo, justificando se esta se dá pela complexidade da causa ou por fato procrastinatório atribuível ao réu.
Na prática, todavia, despreza-se por completo o microssistema de combate ao crime organizado e, com base jurisprudencial, nega-se vigência ao disposto de lei, ao argumento retórico e poroso, completamente despido de base legal, de que não há prazo específico para prisão preventiva. Reina a chamada doutrina do não prazo, há muito denunciada por Aury Lopes Jr.
De igual modo, após o devido processo legislativo, entrou em vigor a Lei Federal n. 13.964/2019, a qual provou extensa reforma em diversos diplomas legais. Dentre as várias alterações, destaca-se aquela inserta no art. 316, parágrafo único, do CPP: “decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”.
De novo, indaga-se: qual o espaço para subjetividade ou discricionaridade nesse caso, em que as balizas legais são objetivas e não dão margem para dúvidas?
A hipótese de incidência é fechada, e o consequente normativo, determinado. Se a prisão preventiva superar os noventa dias e não houver decisão fundamentada, de ofício, a atestar a necessidade de manutenção da custódia cautelar, o consequente normativo impõe o reconhecimento da ilegalidade da prisão. Ademais, afora a disposição legal do art. 316, parágrafo único, do CPP acerca da matéria, existe ainda regramento constitucional de inequívoca interpretação: “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária” (art. 5º, LXV, CFRB88).
Por fim, rememora-se o famigerado habeas corpus n. 126.292, no qual o STF, sem interpretar, alterou – como se Poder Constituinte Originário fosse – o conteúdo do art. 5º, LVII, da CF, para fazer parecer constitucional a vedada execução provisória de pena. Com o devido respeito, o dispositivo constitucional, ao assegurar que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, é mais que um princípio (princípio aqui entendido como norma jurídica de hipótese de incidência aberta e consequente normativo indeterminado), porquanto estabelece balizas precisas sobre o estado de inocência (hipótese de incidência fechada), que deve perdurar até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (consequente normativo determinado). O trânsito em julgado, por óbvio, tem carga semântica inequívoca e traduz fenômeno jurídico certo: a coisa julgada, que é por sua vez um estado de inalterabilidade da decisão por impossibilidade de interposição de recurso. Não há como, dogmaticamente, flexibilizar-se o conceito para, ao sabor do momento, dar-lhe esta ou aquela extensão.
Em que pese a clareza dos comandos legais e constitucionais citados à guisa de exemplo, resulta induvidoso que estas regras de conduta, de observância cogente, as quais deveriam funcionar como garantia do cidadão frente ao Estado, são diuturnamente flexibilizadas, de modo tal que, mesmo sem um formal controle de constitucionalidade, simplesmente deixam de ser aplicadas, como se, em verdade, sequer existissem. Não há estrita observância à CF88, à lei ou mesmo à jurisprudência, caso que revela inédita crise interna e externa entre os Poderes da República Federativa.
O cenário atual, portanto, é de crise, a qual chegou e se instalou, também, na mais alta Corte do país, que, de igual modo, em vez de funcionar como guardiã última da Constituição Federal e da ordem jurídico-constitucional, tem dia após dia violado dispositivos de interpretação inequívoca e, pior, de forma aleatória e sem justificativas jurídicas plausíveis.
Por todas essas razões, afirma-se: insegurança jurídica no Poder Judiciário, a única expectativa de previsibilidade.
Diante de uma dupla afirmação, deixa-se, para concluir, uma importante indagação: “nas favelas, no senado, sujeira pra todo lado; ninguém respeita a constituição, mas todos acreditam no futuro da nação. Que país é esse?”
(*) FILIPE MAIA BROETO é advogado criminalista, professor de Direito Penal e Processo Penal, mestrando em Direito Penal Econômico (Unir-ESP) e Direito Penal Econômico e da Empresa (UC3M-Esp), especialista em Direito Penal Econômico (PUC-MG) e autor de livros e artigos jurídicos publicados no Brasil e no exterior.