Suelme Fernandes
Adoro caminhar sozinho no Parque Mãe Bonifácia principalmente quando estou angustiado e nos dias mais difíceis. Incrivelmente aquele lugar me acolhe como coração de mãe. Sempre penso no colo de Mãe Bonifácia. Muita gente caminha no parque, mas nunca soube quem era de fato esse personagem histórico que homenageia aquele local, apesar de ter uma estátua gigante dela no meio do parque.
O parque quando foi inaugurado pelo então governador Dante de Oliveira em 2000, além de proteger uma das últimas áreas remanescentes de mata do cerrado na capital, abrigou dentro de seu perímetro vários sítios arqueológicos e antigas vivendas de pretos fugidos para região que foi por muito tempo também conhecido como Quilombo de Mãe Bonifácia. Uma pena nunca ter havido um tratamento arqueológico nessa região.
Pouco se sabe documentalmente sobre a história da Mãe Bonifácia e oque se sabe vem de relatos de memória oral. Efetivamente apenas dois memorialistas dedicaram-se a resgatá-la, Aníbal Alencastro e Alexandre Ferreira Mendes.
Para Ferreira Mendes a mãe Bonifácia era uma negra alforriada que teria vivido entre os anos de 1796 quando nasceu até 1867 quando veio a óbito com 80 anos. Não se sabe ao certo seu nome de batismo e se teve familiares.
Segundo o autor ela sobrevivia de sua arte de rendeira de bilros e de ensinar as moças da cidade o bordado para o enxoval. Mãe Bonifácia teria morrido de bexiguinha ou varíola durante a Guerra do Paraguai. Na sua abordagem Alexandre não enfatiza sua dimensão de líder política contra a escravização dos negros e fim da abolição.
Já a narrativa de Alencastro identifica a preta Mãe Bonifácia como alguém que conseguiu com seu trabalho de renderia e uma pequena horta que possuía, comprar sua alforria.
Bonifácia ficou conhecida como benzedeira e curandeira e era bastante procurada para todo tipo de benzeção, numa época em que existiam pouquíssimos agentes de cura como cirurgiões médicos e sangradores.
Segundo o jornalista da época, Ezequiel de Siqueira, Mãe Bonifácia ficou conhecida como benzedeira e curandeira, mas também acolhia as pessoas rejeitadas ou excluídas da sociedade cuiabana, em especial as mulheres negras escravizadas e forras. Era conhecida por supostamente curar de varíola, epidemia que dizimou 50% da população da capital. Sua casa mais parecia um posto de atendimento médico.
Bonifácia curava feridas de escravizados, tratava de leprosos, benzia contra mal olhado, espinhela caída entre outras curas e ainda indicava muitas ervas e chás medicinais. Também matava a fome dos miseráveis e ensinava aos mais corajosos as rotas de fugas que conectavam a vila urbana de Cuiabá com os quilombos rurais de resistência negra e indígena de Mato Grosso no rio do Manso.
Mãe Bonifácia teria morado na região do atual bairro Duque de Caxias próxima ao 16 Batalhão de Caçadores do Exército numa Rua que homenageava seu nome, mas que atualmente chama-se Cel. Otiles Moreira. Essa rua termina onde teria sido a última morada da ex-escravizada na área do Parque. Em 1835, quando ela tinha 35 anos d rodada essa imensa região já era conhecida como área da Mãe Bonifácia. Afirmou o pesquisador Nedson Capistrano e Alencar.
Por causa da perseguição que sofria numa sociedade de padroado, patriarcado e escravidão, Mãe Bonifácia foi se afastando cada vez mais do espaço urbano de Cuiabá, mudou-se pra região que compreende o parque as margens do córrego do Caixão.
No seu trabalho de mestrado a historiadora Cristiane Santos Silva levanta a hipótese que, tal qual as demais irmandades negras da América Portuguesa que havia em Cuiabá algumas rotas de fugas e uma rede de solidariedade entre essa pequena Vila e as territorialidades africanas chamadas de quilombos e que ambas foram mantidas e bancadas pela Irmandade dos pretos de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito de Cuiabá
Com a generosidade de mãe Bonifácia aquele local foi aos poucos se tornando um ponto de apoio às tentativas de fugas de escravizados urbanos, pois ela dava cobertura e apoio para as empreitadas rebeldes na mata do atual parque (negros e índios), mas também acolhia na região pobres, lazarentos e todo tipo de gente escolhida da Vila de Cuiabá em sua vivenda.
Segundo Aníbal Alencastro ela até recomendava que os cativos fugissem pelos córregos para evitar que os cães farejassem e fossem encontradas as pegadas na mata.
O local onde vivia Mãe Bonifácia era uma espécie de paragem de descanso e abastecimento pra que os fugitivos seguissem viagem para o maior quilombo de todos da região o Quilombo do Manso, que se encontra atualmente submerso pela barragem de mesmo nome.
Então esse eixo do Córrego da Prainha para fora do espaço urbano de Cuiabá como afirmou o grande historiador cuiabano Carlos Rosa eram de territorialidades africanas, notadamente os nomes dos lugares remetem a essa história, Baú Sereno, Lixeira, Araés, Quilombo, passando pela Cruz de Shilon, Lava-pés e Mãe Bonifácia. São na verdade, antigas rotas de fugas próximas ao microambiente urbano da Vila Real de Cuiabá.
Certamente a fama de feiticeira de Mãe Bonifácia assustava os aventureiros em busca de recapturar os escravizados fugitivos, pois na pequena Vila havia muitas lendas sobre os poderes
Mágicos de Mãe Bonifácia. O fuxico corria solto de boca a boca em muitas histórias mirabolantes: diziam que se alguém numa captura se encontrasse com ela, ficava cego para sempre ou que a pessoa caia em desgraça e que a mesma tinha inclusive o poder de desaparecer na mata. Até hoje a quem acredite que o espírito dela ainda habita naquelas paragens vagando entre as árvores de noite.
E por isso, seu quilombo era respeitado pelas autoridades locais e cada vez mais sua liderança era conhecida entre os escravizados que almejavam viver em liberdade no Quilombo da Mãe Bonifácia ou no Quilombo do Manso.
Não se sabe muita coisa além do que escrevemos acima fruto de fiapos de artigos e pesquisas existentes nas redes sociais.
Alexandre Ferreira Mendes afirmou que ela morreu por volta de 1867, com 80 anos de idade durante a Guerra do Paraguai de varíola e teria sido enterrada no Cemitério da Piedade.
Para o memorialista Ferreira Mendes, depois da morte de Bonifácia na sua antiga casa ainda funcionou por determinação do Presidente de Província de Mato Grosso Couto Magalhães (1866-1868) um Lazareto ou Leprosário destinado aos doentes de lepra. A casa teria ficado depois por um bom tempo abandonada até o Presidente de Mato Grosso Gal. Manoel de Almeida Gama Lobo, Barão de Batovi (1883-1884) determinar a construção d sim paiol de pólvora para o exército que a partir de então assumiu o local. Foi chamado de Paiol de pólvora do Córrego de Mãe Bonifácia.
Ferreira Mendes nos informa que antes de morrer Mãe Bonifácia que possuía muitas joias e ouro em grande quantidade teria colocado dentro de um caldeirão e enterrado nos fundos do seu quintal o que levou a muitos aventureiros a escavar naquela região em busca desse tesouro encantado.
Há quem diga que é comum ver flores, marcas de velas nos pés da estátua da Mãe Bonifácia no parque e até fiéis rezando na sua estátua e que é sempre bom ao se fazer uma trilha pedir pra que a Mãe Preta possa nos livrar das angústias e dos sofrimentos da vida. A devoção a mãe preta generosa que acolhia a todos como filhos mesmo que distante daquele tempo dos quilombos, continua viva na devoção popular.
Eu sempre fiz isso e sempre sinto que para além dos benefícios físicos da caminhada sempre recebo uma proteção espiritual muito grande quando caminho no parque.
Que a generosidade de Bonifácia nossa mãe que representa tanto para a cultura e história cuiabana possa continuar sendo cada vez mais um símbolo de resistência e amor ao próximo.
O racismo também se faz com o silêncio, seja dos que se calam diante de um crime ou seja pela história por não ter se dedicado profundamente ao estudo de quem foi essa personagem tão rica para a História da Luta dos Pretos e Pretas no Brasil.
Nessas lutas contra o racismo as manipulações da história e revisionismo sempre existem para silenciar ou apagar as trajetórias de grandes líderes mulheres e homens que se tornaram excepcionais na vida por causa de uma ideologia científica racista que reproduz opiniões de hierarquias entre as raças dos meados dos Sec.XIX ainda.
Fica aqui minha pequena homenagem e lembrança dessa mulher generosa que foi inviabilizada pelo esquecimento, como forma de agradecimento pelos dias em que me acolheu solitário e triste nas caminhadas no Parque Mãe Bonifácia em busca da felicidade e paz no coração.
Lembra e esquecer não é ato falho e sim político! Viva mãe Bonifácia!