Gonçalo Antunes de Barros Neto
Às margens do rio Cuiabá, no coração do Pantanal, Castro e Deodora cresceram juntos, como duas árvores que se entrelaçam desde as raízes. Filhos de pequenos sitiantes, seus dias eram preenchidos com brincadeiras simples, o som das águas correntes e o farfalhar da vegetação. Castro, sempre atento e trabalhador, era o principal ajudante do pai nas lidas do sítio, aprendendo desde cedo os ritmos da terra e a sabedoria que o Pantanal oferecia a quem tivesse paciência de escutá-lo. Já Deodora era diferente. Criada com um espírito aventureiro, era incentivada a sonhar alto, a olhar para além dos limites do horizonte verdejante.
Mesmo assim, o amor entre os dois brotou naturalmente. Adolescente, Castro a admirava com a intensidade de quem sabia que sua felicidade estava ali, nas pequenas coisas. Deodora, por sua vez, sonhava com um mundo que parecia distante e grandioso, onde pudesse brilhar como modelo, atriz, uma estrela da cidade grande. A decisão de partir foi inevitável. "Ganha o mundo, minha querida, que ele é seu," disse Castro, resignado, mas sincero, ao despedir-se. "Ficarei por aqui, este é o meu destino."
A vida seguiu seu curso. Castro permaneceu no sítio, enfrentando os desafios diários com coragem e determinação. O mundo à sua volta era indiferente às suas dores, suas alegrias, ao amor perdido. As chuvas vinham e iam, as cheias do Pantanal seguiam seu ciclo implacável, e o sol nascia todos os dias, sem notar sua solidão. A natureza parecia dizer-lhe que, no grande esquema das coisas, ele era apenas mais um.
Nesse ponto, o pensamento de Albert Camus ressoa. Para Camus, o mundo é absurdo — não por ser irracional, mas por sua indiferença à busca humana por sentido. Castro vivia essa realidade. O Pantanal, com toda sua beleza, não se importava com seus anseios ou sua saudade de Deodora. Ainda assim, ele não sucumbiu ao desespero. Como o herói de Camus em O Mito de Sísifo, que continua a empurrar sua pedra montanha acima, mesmo sabendo que ela sempre rolará de volta, Castro encontrou força na aceitação do absurdo.
Ele compreendeu que, embora o mundo não oferecesse sentido algum, era sua tarefa criar um. No trabalho árduo no sítio, na convivência com os animais e na contemplação das águas do rio, encontrou um propósito. Sua inteligência prática e sua reflexão constante sobre o lugar que ocupava no universo permitiram-lhe construir uma vida plena, ainda que simples.
Enquanto isso, na cidade grande, Deodora vivia uma história diferente. O mundo que tanto desejara mostrou-se resoluto. Entre os holofotes e os ensaios fotográficos, descobriu que a fama e o sucesso eram feitos de promessas vazias e competição feroz. Sua beleza, que um dia parecia ser seu maior trunfo, tornou-se uma moeda de troca em um sistema impessoal e desgastante.
Com o tempo, a decepção cresceu. Deodora percebeu que o brilho das luzes da cidade não podia substituir a paz que um dia sentira às margens do rio Cuiabá. Como em Nietzsche, que afirmou que "quem tem um porquê viver pode suportar quase qualquer como", ela perdeu seu "porquê". Sua busca por glória desvinculada de raízes e significados não a sustentava mais.
Cansada, retornou ao Pantanal, à terra onde crescera e onde esperava encontrar conforto. Mas o que encontrou foi um cenário inesperado: Castro estava casado. Seu rosto, marcado pelos anos de trabalho ao sol, exibia a serenidade de quem aceitara o destino sem se render a ele. Sua esposa, uma mulher simples e bondosa, compartilhava sua vida com alegria e cumplicidade.
Deodora sentiu o peso da liberdade que um dia escolhera. Como Kierkegaard descreveu, a liberdade é, ao mesmo tempo, um presente e um fardo, pois implica a responsabilidade de arcar com as consequências de nossas escolhas.
A história de Castro e Deodora é, em última análise, uma reflexão sobre a condição humana. Entre o bem e o mal, a alegria e a dor, o que permanece é a coragem de viver, ainda que o mundo não ofereça garantias.
É por aí...
(*) GONÇALO ANTUNES DE BARROS NETO (Saíto) tem formação em Filosofia, Sociologia e Direito. Da Academia Mato-Grossense de Letras (Cadeira 7) e da Academia Mato-Grossense de Magistrados (Cadeira 19).
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