Os 145 anos do Liceu Cuiabano foram comemorados esta semana com uma programação que deu visibilidade e fortaleceu não só o conceito da maior e mais antiga escola pública de Mato Grosso, mas também destacou a necessidade de cuidar do patrimônio histórico de Cuiabá.
Dirigida pelo jovem professor e mestre Lucas Vaz (30) o Liceu é uma escola pública centenária em permanente evolução, que valoriza o passado e projeta o futuro. A comunidade escolar deu um abraço fraterno na sede do Liceu no dia 3, data da fundação (3/12/1879) e no dia 11 houve a caminhada pela valorização do centro histórico, passando pelas antigas sedes. Começou na atual sede do Ganha Tempo na praça Ipiranga – onde a escola foi implantada no final do século XIX – e passou pelas sedes seguintes, no atual Correios e no Palácio da Instrução.
Ali estudaram milhares de alunos antes da construção do prédio atual pelo interventor Júlio Strübling Müller em 1944. A nova e imponente sede do Liceu Cuiabano, em estilo Art Deco, foi tombada como Patrimônio Cultural Estadual Edificado em 1984. O prédio marcou uma nova fase no ensino dos jovens mato-grossenses e teve como seu primeiro diretor o Prof. Jercy Jacob. Em 13 de março de 1979, no seu centenário, o antigo Colégio Estadual recebeu o nome de Liceu Cuiabano. Mais tarde, em 1998, o ex-aluno e então governador Dante Martins de Oliveira homenageou a viúva de Júlio Müller e a escola passou a se chamar Escola Estadual de I e II Graus Liceu Cuiabano Dona Maria de Arruda Müller.
“Nós enquanto instituição de educação pública, temos o dever de valorizar o patrimônio arquitetônico, histórico e educacional que é o Liceu. Por isso, fizemos a primeira caminhada pela visibilidade do patrimônio público em comunhão com os alunos, professores, servidores, ex-alunos, ex-professores e a comunidade. Eu acredito que esta estrutura física reverbera a identidade cuiabana enquanto cidade tricentenária. Essa escola reverbera sentimentos e memórias construídas ao longo destes 145 anos. Celebramos também a superação das dificuldades do ensino público, mantendo um padrão de excelência que até hoje atrai milhares de estudantes em busca de uma vaga nesta instituição que é referência de qualidade de ensino. A educação pública e o SUS são patrimônios que precisam ser valorizados, pois transformam vidas, são acessíveis a todos e essa valorização é o que constrói a nossa identidade como comunidade, com nossos direitos, nossos desejos e nossas forças para continuar. Quem sai do ensino médio do Liceu sai com uma base sólida construída sob essas paredes centenárias, em boas condições para prosseguir nos estudos”, afirma Lucas Vaz.
História
No último semestre do século XIX, Cuiabá ainda era uma cidade pequena e pobre, enquanto o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais se modernizavam influenciados pela Revolução Industrial que se espalhava pelo mundo. Dom Pedro II, que governou até a Proclamação da República em 1889, buscava afirmação internacional e procurava mostrar o País como uma nação jovem, moderna e civilizada. E ser ”civilizada” significava ter cidades urbanizadas, saneadas, com serviços públicos de qualidade. Cuiabá e Mato Grosso, última fronteira do Centro-Oeste, não podiam distanciar-se dos objetivos imperiais e por isso o Imperador determinou aos presidentes das províncias iniciarem a reformulação do ensino.
As propostas políticos-pedagógicas, segundo a professora Luíza Volpato, em “Cativos de Sertão”, eram de “cunho moralizador, objetivando formar a elite para cumprir seu papel de propulsora do progresso e formar as camadas populares para se submeterem ao capital”. Essa proposta pedagógica e modernizadora funcionou também em Mato Grosso, sendo criadas escolas secundaristas com a Escola Normal, para formar professoras, e o Liceu Cuiabano. No início do Século XX, Maria Dimpina foi uma personagem que marcou a história da mulher em Mato Grosso. Foi a primeira aluna do Liceu, onde até então só estudavam rapazes e depois professora.
O professor Aecim Tocantins que estudou no Liceu nos anos 1930, afirma em livro que “professores capacitados, direção regrada e competente, além de muito civismo, foram o marco da minha época de estudante no Liceu Cuiabano”. Ali também estudaram o historiador Lenine Póvoas, o médico Clóvis Pitaluga, o cel. Octayde Jorge da Silva, os atores Romeu Benedicto e Claudete Jaudy, os artistas Luiz Marchetti e Caio Ribeiro, entre outros. Por ali pontuaram mestres como Zulmira Canavarros, Cesário Neto, Isaac Póvoas, Nilo Póvoas, Pedro Gardés, José Magno, José Estevão, Filogônio Corrêa, Ulisses Cuiabano, os irmãos Guilhermina e Benedito de Figueiredo, Filogônio de Paula Corrêa, Rafael Rueda, o padre Firmo Pinto Duarte, Dunga Rodrigues e Eni Amin. Atualmente o Liceu abriga 1.450 estudantes de 130 bairros da Capital.
Memórias e reconhecimento
Alguns ex-alunos, hoje personalidades ativas e de destaque em suas áreas de atuação, relembram com saudade os tempos de estudante no Liceu e atestam que o colégio mudou suas vidas. O ex-senador Antero Paes de Barros lembra que conheceu o colégio quando seu pai, Ranulpho, foi professor do Liceu. “Já estudante, me lembro da boa estrutura do Liceu, o único colégio da época com laboratórios de Física e Química, instalações esportivas e amplas salas de aula”. Um dos quatro ex-alunos que se tornaram governadores (ao lado de Dante, Carlos Bezerra e Júlio Campos), o ex-Procurador da República e ex-senador Pedro Taques se considera honrado em ter estudado no mesmo colégio do grande marechal Cândido Rondon, do ex-presidente da República Eurico Gaspar Dutra e tantas outras personalidades.
“Para mim foi a honra ter estudado ali, onde estudaram muitos personagens históricos e gestores públicos, mas também outras pessoas simples, hoje profissionais de vários ramos, que são igualmente importantes para a sociedade. Eu estudei ali da 5ª à 8ª séries, e me lembro bem do uniforme, calça azul e camisa branca com o brasão de Mato Grosso. Todas as sextas cantávamos o hino nacional enquanto algum aluno segurava a bandeira. A minha mãe trabalhava na secretaria da escola à noite. Eu estudava à tarde e depois voltava de minha casa na rua 24 de Outubro para buscar mamãe no Liceu”. Na 24 de Outubro moravam também Antero e Júlio Campos, também ex-alunos, e o radialista e apresentador Roberto França.
“O Liceu foi muito importante na minha vida, me deu uma excelente formação básica antes de ir para a ETF e UFMT e mais tarde passar no concurso para Procurador da República. A qualidade do ensino e das vivências adquiridas foi muito significativa para gerar a pessoa que me tornei”, afirmou Taques. Em sua fala na cerimônia comemorativa que aconteceu no grande anfiteatro, ele ressaltou que mais importante que os cargos honrosos como o de governador, é a possibilidade da escola formar cidadãos conscientes e aptos a analisar a realidade e intervir para melhorá-la. E deu um conselho aos alunos: “a melhor forma de protestar, de se revoltar contra as desigualdades e injustiças, é estudar muito. Através da educação nós transformamos as pessoas para que possam transformar o mundo em que vivem. Como filho de professora eu aprendi isso logo cedo. O oprimido tem a educação como ferramenta para se libertar. E isso acontece através da valorização de escolas públicas de qualidade como este Liceu”.
Sempre bem-humorado, o ex-governador divertiu a plateia relembrando seus tempos de aluno. “Eu estava aqui em 1979 nas comemorações do primeiro centenário do Liceu, volto hoje nos 145 anos e espero estar aqui no segundo centenário. Neste anfiteatro eu vivi um dos breves momentos de minha carreira como artista. Participei de um concurso de música e poesia e fiquei em terceiro lugar. Ganhou o meu primo e colega Zeno Gonçalves, depois prefeito de Rosário Oeste. Minha carreira musical não virou, felizmente para os ouvintes, mas consegui esse prêmio. Também tentei ser um astro do basquete, o Liceu tinha uma quadra muito boa, de madeira, e os treinos eram às 6h da manhã, antes das aulas. Eu fui num treino e logo desisti, pois era muito baixinho e não acertava a cesta. Mas era um bom aluno e só uma vez fui punido: certo dia eu fui flagrado por uma inspetora roubando um beijo de uma colega, coisa que era proibida naquela época…fiquei uma semana suspenso”, lembrou o ex-aluno Pedro Taques.
Mudança de vida
Cineasta, diretor de teatro e audiovisual, escritor, roteirista, Luiz Marchetti conheceu o Liceu na infância, antes mesmo de estudar lá. “Eu nasci na casa da minha avó na rua Cândido Mariano, perto da pracinha do Liceu, ao lado da casa do meu tio Luiz Bem-te-vi a quem eu devo o nome. Vivi toda a minha infância naquela pracinha, tinha uma seringueira bem ali no meio. Meu pai Geraldo Marchetti, cuidava dos blocos carnavalescos que ensaiavam na frente do Liceu, antes de descer para a Praça da Mandioca. A minha mãe Wanda Marchetti declamava poesias não só na Academia de Letras, mas também no Liceu. E desde a infância vi minha avó Almira de Arruda e Silva, professora Almira, valorizar muito um quartinho que havia nos fundos de nossa casinha humilde, casa de professora, a nossa biblioteca. Então era como uma preparação e vovó previa: ‘olha, um dia você vai estudar no Liceu’. E na verdade entrei no Liceu antes de começar a estudar, pois foi no anfiteatro que assisti minha primeira peça de teatro, ‘Pluft o fantasminha’ que veio do Rio. Vi Elba Ramalho cantando no projeto Pixinguinha, gestão da nossa saudosa Marília Beatriz, vi meu primeiro show de rock no campo de futebol do Liceu”.
Ele admite que o Liceu transformou sua vida. “Foi um trampolim, uma semente da minha programação artístico-cultural, além do ensino de qualidade. Tudo que eu fiz depois, fazendo teatro na Escola Técnica e estudando cinema fora do estado, é porque já tinha uma referência do Liceu não só como lugar de educação e lazer, mas como espaço de fomento à melhoria intelectual, ao avanço social, lugar de fazer grandes amigos e de iniciar os trabalhos com arte e cultura. Foi incrível a potência do Liceu na minha história de vida. Sou extremamente grato a todos os professores, funcionários e gestores que ali dedicaram suas vidas aos alunos”, diz Marchetti.
Nessa mesma linha reflete Caio Augusto Ribeiro, escritor, artista, ator e criador de intervenções urbanas que mesclam as linguagens literária, cênica e audiovisual. “O Liceu foi uma experiência transcendental na minha vida. Estudei 2012 a 2014, vim de Rondonópolis e era um adolescente super rebelde. No inicío dei uns problemas lá, me envolvendo em brigas, mas minha vida foi transformada pelo Liceu. Quando muitos queriam me expulsar do colégio, a coordenadora Edenilzes disse não, esse menino tem um potencial. E ao invés de me excluir ela montou um projeto de teatro e me deixou coordenar. Na época o Liceu estava sem grupo de teatro, e em 2012 a gente retomou numa experiência coletiva vitoriosa. E a coisa ficou tão grande que até passou a valer nota. Participamos de festivais como o Fetran, ganhamos muitos prêmios com o grupo Teatreus. Agradeço muito a Edenilzes por ter acreditado em mim, assim como o diretor Alceu Trentin que sempre me apoiou e apoiou o grupo de teatro”.
Caio lembra que na Copa de 2014 foi selecionado como representante do Liceu para recepcionar os turistas e outros projetos. “E também reativamos o Grêmio Estudantil que estava parado, venci uma eleição muito acirrada, presidi o grêmio e nesta época conheci os grandes amigos com quem converso e trabalho até hoje. E foi pelo estímulo de duas professoras de lá que decidi fazer Ciências Sociais na UFMT: a professora Cláudia, de História e a Bruna de Sociologia. Também foi ali que conheci a mãe do meu filho, praticamente noivamos enquanto eu estava no terceiro ano do ensino médio. O Liceu foi um ponto de virada na minha vida. Boa parte do que sou hoje devo ao incentivo dos professores de lá, que poderiam ter me colocado numa caixinha de rebelde e brigão e decidiram colocar arte na minha vida. Então sou extremamente grato ao Liceu pois recebi carta branca para fazer teatro, vídeos, fizemos até documentários sobre os fantasmas do Liceu e me senti plenamente realizado. Foi o colégio que realmente me endireitou, me colocando nos trilhos da arte”.
A correspondente internacional da Rede Globo, a cuiabana Delis Ortiz, também reconhece a importância do Liceu eu sua vida. “Nesta escola eu aprendi muito sobre meus limites. Aquelas escadarias, as paredes altas me faziam sentir pequenina e me desafiavam. Lembro das aulas de ginástica rítmica de madrugadinha e de um momento ímpar, a formatura no belo anfiteatro. Eu fui a oradora da turma e escrevi um discurso, mas na hora não consegui enxergar uma letra. Aí improvisei, declamando um poema dramático que sabia de cor. Chorei e chorou a plateia, foi inesquecível”, relembra a jornalista.
Neila Barreto, também jornalista, escritora, Mestre em História e membro da Academia Mato-grossense de Letras é outra ex-aluna brilhante do Liceu, com significativa produção editorial, várias graduações superiores e um trabalho muito relevante como historiadora. “Tenho muito orgulho em ter sido aluna e professora concursada no Liceu. Fiquei como estudante até 1974 e de lá fui para a UFMT. Com a graduação em Letras, mais tarde fiz o concurso e lecionei lá, outra experiência gratificante em minha vida”.
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